Em meio ao avanço de facções, cresce o número de menores envolvidos em atos infracionais em BH
Perfil é de jovens negros e em situação de vulnerabilidade; contato com drogas vicia e mata meninos

Depois de seis anos em queda, o número de adolescentes envolvidos em ocorrências infracionais (conduta equivalente a crime ou contravenção penal) voltou a crescer em Belo Horizonte. Em 2023, chegaram 3.390 casos à Vara da Infância e da Juventude da capital. O número é 11% maior do que 3.054 registrados no ano anterior. A alta coincide com o avanço da atuação das facções criminosas de outros Estados em Minas Gerais e aponta para a necessidade de ações efetivas para frear a cooptação de jovens em busca de oportunidades de emprego e renda nas periferias. Entre as crianças e adolescentes encaminhados para julgamento no ano ado, 35,52% tiveram como motivação o tráfico de drogas. Os dados foram divulgados nesta quinta-feira (27) pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
O levantamento mostra que desde 2017 a Vara da Infância recebeu 54,32 mil casos, envolvendo 33,2 mil adolescentes. Alguns desses jovens am inúmeras vezes pelo sistema. “O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que os adolescentes, em razão de sua conduta infracional, são íveis de sofrer a intervenção do poder público e da Justiça para que cumpram medidas de proteção e socioeducativas.
As medidas de proteção se aplicam nas situações em que é possível constatar a condição de vulnerabilidade e risco, e as medidas socioeducativas, se o menor for autor de ato infracional”, explicou nas considerações iniciais da pesquisa a juíza titular da Vara da Infância e da Juventude de BH, Riza Aparecida Nery. Atrás do tráfico de drogas, o furto é o segundo ato infracional mais cometido por menores na mesma comarca, representando 9,22% dos casos em 2023.
A juíza reforça a importância da quantificação dos casos para “melhor visibilidade e aplicação de políticas públicas de prevenção”. Entretanto, segundo o especialista em segurança pública Jorge Tassi, apesar de serem de fato um norte importante, os indicadores apontam uma tendência de forma subnotificada. “É importante entender que, por trás de um ato infracional, existe um processo de Justiça. A polícia encaminha o caso para a Vara da Infância e da Juventude, e o processo tem um prazo para tramitar de até 45 dias contados desde o crime. A maior parte dos processos não chega ao fim. Se não foi um caso grave, em que o adolescente foi apreendido, nem chega ao Judiciário”, pontua.
Para Tassi, a maior participação dos adolescentes em atos análogos a crimes tem explicações múltiplas. Como durante a pandemia houve uma queda na circulação de pessoas, entre os anos 2020 e 2022, por exemplo, ocorreu uma redução também da atividade criminosa e das apreensões. Ou seja, 2023, quando a vida social já havia voltado plenamente à rotina, a tendência era que o crime também assim o fizesse.
Além disso, a evasão escolar também teria impacto nessa realidade. Em Minas Gerais, houve uma redução de 450 mil matrículas em dez anos, segundo dados do Ministério da Educação. O número de alunos matriculados no ensino regular do Estado ou de 1,9 milhão, em 2014, para 1,4 milhão em 2023. Fora da sala de aula e, muitas vezes, em condição de vulnerabilidade, esses adolescentes se tornam alvos fáceis para o tráfico. Entre os menores que chegaram à Vara da Infância em 2023, só 3,11% têm ensino médio concluído de forma regular ou pela Educação de Jovens e Adultos (EJA).
“A cooptação é muito fácil. Os adolescentes são os primeiros a serem pegos pelo crime. Você sabe quanto recebe um atravessador de droga? De uma vez só, ele a a ter o ao dinheiro, e isso atrai. Depois, esses meninos engrossam as estatísticas de desaparecidos, assassinados ou detidos”, afirma Tassi. Uma busca por “mão de obra” que teria aumentado nos últimos anos com o avanço da atuação do crime organizado no Estado, na visão do especialista:
“Esse aumento pode indicar a atuação do tráfico e relação até com o crime organizado. O tráfico de drogas está em um patamar de atuação tranquila, está crescendo. Os adolescentes são ‘contratados’, começam como ‘mulas’ (atravessadores), depois receptadores, e vão trabalhando em escalada”, explica.
Sequela social
Mais do que uma questão de segurança pública, o envolvimento da juventude com o crime é uma sequela social, como explica o advogado criminalista Greg Andrade. “Não existe vácuo no poder. Onde o Estado não atua levando ensino de qualidade, oportunidade de lazer, distração, assistência social e até o a infraestruturas básicas, o crime chega e ocupa. Onde há vácuo de perspectivas e sonhos, o tráfico chega como alternativa. O que não é investido em outras áreas a a ser necessário em segurança pública. É o que chamamos de ‘encarceramento em massa’ da nossa juventude, principalmente a pobre e preta”, diz.
A vulnerabilidade social pode ser percebida em partes do relatório do TJMG. Menos de um terço (31,38%) dos jovens encaminhados ao Judiciário possui certidão de nascimento, 28,6%, F, e 28,1%, carteira de identidade. Entre os que estão na escola na época em que são detidos, 99,83% frequentam escola pública. Quanto à renda familiar, 29,71% são sustentados com até um salário mínimo, e 30,74%, de um a dois salários.
‘Eu não nasci bandido, nasci artista’
Foto: Arquivo Pessoal
Quando ainda era morador de periferia em São Paulo, Sidnei Fernando Marques de Paula, hoje com 36 anos, dividia uma casa de quatro cômodos com dez pessoas: pai, mãe, avó, três irmãos e quatro tios. A dificuldade financeira não tinha sido suficiente para levá-lo ao mundo do crime. Cenário que mudou aos 12 anos, quando ele perdeu a mãe, logo após a morte do pai. “Meu pai morreu assassinado, depois minha mãe morreu de pneumonia. Fiquei desamparado, revoltado e comecei a traficar. Eu tive que fazer uma escolha na época, estudar e sonhar ou sobreviver”, conta.
O tráfico de drogas foi o primeiro crime com que ele teve contato, mas não parou por aí. Na sequência, se envolveu em assaltos a bancos e casas lotéricas. Depois, sequestro. ou pela antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem) – para onde eram levados jovens em conflito com a lei e que foi extinta em 2016, depois de várias denúncias e confirmações de maus-tratos e violência extrema contra os internos – por três ocasiões: aos 12, 14 e 16 anos. Até que, quando tinha 18 anos, foi preso por ter participado de um assalto a banco em Lagoa Santa, na região metropolitana de BH, com sequestro da gerente do local.
Essa é a história do Sidnei no crime, quando era chamado de “Talibã”, mas não a história da vida dele. “Eu não nasci bandido, eu nasci artista e fui bandido pelo Estado não me dar chance de ter dignidade. Nasci e cresci em uma favela de São Paulo, onde não tinha opção de lazer, oportunidade de trabalho, sequer saneamento básico. O Estado me negou tudo isso. Já o tráfico me deu dinheiro, comida, abrigo e segurança. Se eu tivesse o a qualquer outra chance, não precisaria ter entrado para o crime”, conta.
Ao longo dos 17 anos em que ou preso, ele teve oportunidade de rever a vida e aprender um novo ofício: a música. Um amigo que ele fez no presídio o apresentou para um grande produtor musical e, a partir dali, a transformação se tornou real e foi representada pelo novo nome: rapper SLK. Agora, em liberdade, morando em Belo Horizonte, ele sobrevive da música e tenta fazer a diferença para outros jovens: “Hoje sou influenciador, com mais de meio milhão de seguidores, cantor e compositor. Pela música eu agora resgato jovens da criminalidade mostrando para eles que vale a pena ir atrás dos sonhos”, diz. “É preciso buscar alternativas porque a gente que é de periferia, principalmente quem é pobre e preto, é abandonado pelo Estado. Não foi o governo quem me resgatou do crime, e sim a arte”, completa.
Racismo estrutural
A questão racial citada por ele é outro ponto que precisa ser levado em consideração ao analisar a entrada de jovens no mundo do crime. Conforme os dados do TJMG, 66,32% dos adolescentes flagrados em atos infracionais em 2023 eran pardos e 16,23% eram pretos. Ou seja, 88,55% deles eram negros. E, na análise de especialistas, isso não é por acaso.
O próprio relatório da Vara de Infância e Juventude cita o racismo como explicação para a alta letalidade juvenil no país e encarceramento:
- “Racializar a discussão sobre a letalidade – assim como o encarceramento – de jovens negros aponta para o reconhecimento e enfrentamento do racismo estrutural, garante visibilidade para as disparidades socioeconômicas, estimula o debate público e responsabiliza as instituições atinentes, bem como estimula a formulação de políticas de combate mais assertivas. Na mesma perspectiva, visando lançar luzes sobre o racismo estrutural e institucional que permeia o campo da socioeducação, o Fórum Permanente do Sistema de Atendimento Socioeducativo de Belo Horizonte elegeu como tema transversal para o ano de 2024 o enfrentamento do racismo e a promoção de práticas antirracistas. Além disso, instituiu a Comissão de Práticas Antirracistas e vem promovendo espaços de discussão, desconstrução e construções de extrema relevância para a garantia de direitos dos(as) adolescentes e jovens negros e negras que transitam pelo sistema de Justiça infracional, pela rede de proteção e pelas medidas socioeducativas em Belo Horizonte”, traz o relatório.
João Saraiva, sociólogo e especialista em desigualdades sociais, explica que o fator racial tira oportunidades de uma camada representativa da população e faz com que parte dela fique sem alternativas e vulnerável à criminalidade. “A criança negra, desde a primeira infância, está exposta à vulnerabilidade e aos riscos associados a ela. As pessoas negras não são representadas em espaços de poder, estão em classes sociais menos favorecidas e vivenciam a negação de direitos básicos”, diz.