Operação em Varginha

Policiais teriam empilhado corpos em caminhonete e sentado em cima, diz PF

Corporação ouviu diversos trabalhadores da saúde que receberam os criminosos baleados e, segundo os relatos, todos já estavam mortos

Por José Vítor Camilo, Lucas Gomes e Tatiana Lagôa
Publicado em 28 de fevereiro de 2024 | 17:19

Ao indiciar 32 policiais, sendo 16 da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e 16 da Polícia Militar (PM), pela morte de 26 suspeitos durante uma operação em Varginha, no Sul de Minas, em outubro de 2021, a Polícia Federal (PF) apontou que laudos técnicos identificaram vestígios de adulterações nos cômodos dos dois sítios onde estavam os criminosos. A corporação destacou ainda que, após a morte dos criminosos, os agentes teriam socorrido os corpos para hospitais da cidade, também visando dificultar o trabalho da perícia técnica.

O inquérito policial, inclusive, traz anexado imagens de câmeras de segurança que mostram que os corpos foram transportados empilhados no compartimento de carga das caminhonetes. "No primeiro veículo que trouxe os sujeitos do Sítio 2, via-se policial sentado sobre os corpos, em condição incompatível com eventual a prestação de socorro", diz o documento.

Uma fonte diretamente ligada às investigações disse à reportagem que “está mais do que provado que foi uma chacina”. Com o indiciamento, cabe continuidade do caso pelo MPF, órgão que informou em nota que vai reabrir as apurações.

O TEMPO teve o ao relatório completo que foi remetido à Justiça, onde os investigadores da PF denunciam uma série de irregularidades na ação das polícias. Em um dos momentos, a corporação cita ter ouvido diversos trabalhadores dos hospitais de Varginha para onde os suspeitos foram "socorridos". Nos depoimentos, a grande maioria relatou ter recebido apenas corpos e nenhuma vítima com vida.

"Afora os horrores narrados, o que ficou latente é o registro uníssono de que os nosocômios receberam somente cadáveres. Não houve sequer um lampejo de prestação de primeiros socorros", diz um dos trechos do documento.

Imagens de câmeras de segurança das unidades de saúde também foram analisadas pelos peritos, que observaram não haver "movimentação compatível com prestação de socorro ou a realização de quaisquer manobras de urgência pelos servidores da UPA. Ao contrário, a maioria dos corpos foi retirada do veículo e imediatamente recoberto com lençóis brancos, sugerindo não haver dúvidas sobre a ausência de vida".

Esquema "pega e leva"

Uma policial de alto escalão da Polícia Militar, que não está entre os investigados, prestou depoimento para a PF e disse que os envolvidos na operação fizeram um esquema chamado por eles de "pega e leva". Ela explicou que isso significa resgatar as vítimas baleadas ou qualquer outro ferimento para levar ao hospital em uma tentativa de "salvar vidas". Porém, os investigadores federais apontam indícios de que o intuito poderia não ser esse atendimento imediato.

Um deles é que o tempo estimado entre o tiroteio e o início do transporte dos baleados foi superior a 50 minutos. Além disso, não houve acionamento dos bombeiros militares da cidade de Varginha e do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Não foram encontrados pela perícia nenhuma atadura, pedaço de esparadrapo, gaze ou qualquer objeto que indique tentativa de pronto atendimento.

"Por fim e mais revelador, as imagens dos CFTV (Circuito Interno de TV) do Hospital Bom Pastor e UPA de Varginha registram a forma como os cadáveres foram enleados nas caminhonetes e delas retirados. As câmeras flagram, inclusive, um policial que chega ao hospital sentado sobre os corpos na caçamba de uma das caminhonetes", consta no documento.

"Constata-se, pois, que todos os policiais que estiveram nos locais dos crimes imediatamente após os eventos de tiro e agiram para 'socorrer feridos' ou 'esfriar armas' em verdade agiram para dificultar os trabalhos investigativos", concluiu.

Cena do crime alterada deliberadamente

No inquérito a PF afirma ainda ter encontrado indícios de que “o ambiente ou por alterações deliberadas e não relacionadas com a dinâmica de entrada tática e confronto com eventuais suspeitos”. Os investigadores da PF destacaram que é praxe de todo profissional de segurança pública, inclusive sendo ensinado no treinamento das corporações, que, em caso de se deparar com local de crime, é necessário preservar o ambiente, o que seria um "dever funcional".

"Nos eventos do dia 31 de outubro de 2021 em Varginha essa prática foi dolosamente negligenciada. A preservação dos locais de crime não só deixou de ser observada como foi transgredida. Como exemplo da conspurcação dos locais em que houve a ação policial", completa a PF citando um laudo da corporação que afirma que "a análise preliminar da sala indicou que o ambiente ou por alterações deliberadas e não relacionadas com a dinâmica de entrada tática e confronto com eventuais sujeitos”.

Disparos com armas apreendidas

Durante o suposto embate entre policiais e bandidos, teriam sido efetuados cerca de 500 disparos pelos policiais e apenas 20 que teriam partido dos criminosos. Ainda no indiciamento dos policiais, a PF destacou que, ao analisarem os disparos atribuídos aos suspeitos, os peritos identificaram incompatibilidade com a dinâmica apontada pelas corporações policiais.

“Importante destacar que o posicionamento dos estojos desta carabina se mostrou incompatível com a dinâmica de progressão no terreno, que indica a possibilidade de introdução de vestígios forjados do evento (simulação de resistência)”, escreveu a PF. “Os consistentes indicativos de que os tiros no muro frontal e lateral foram produzidos depois do domínio da situação, conduzem à conclusão de que foram efetuados pelos policiais, com o possível propósito de simular resistência que não existiu”, completou.

PM diz que competência é da Polícia Judiciária Militar

Em nota, a Polícia Militar de Minas Gerais afirmou que "a investigação do crime militar é de competência EXCLUSIVA da Polícia Judiciária Militar", com base "nos termos do art.125, §4º da Constituição Federal de 1988, combinado com o art.144, §4º da CF/88, e de acordo com o art. 142, inciso III, da Constituição do Estado de Minas Gerais, e art.7⁰, "h",  do Decreto Lei 1002/69".

Corregedoria da PRF reabriu inquérito em 2023

Diante do indiciamento dos policiais envolvidos na operação, a reportagem de O TEMPO procurou a assessoria de imprensa da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que informou, por nota, que colabora com os órgãos competentes para o "esclarecimento de todos os aspectos da ocorrência", completando ainda que, em 2023, a Corregedoria-Geral da PRF reabriu procedimento apuratório "frente ao surgimento de novas evidências".

A PRF destacou ainda na nota que a operação deflagrada ao lado da PMMG visava o combate a um "grupo criminoso dedicado à tomada de cidades", na prática conhecida como novo cangaço.

"Na ocorrência, um farto armamento foi apreendido: metralhadora .50, fuzis de grosso calibre, pistolas, dezenas de quilos de explosivos e grande quantidade de carregadores e de munições. A PRF destaca o compromisso com os limites constitucionais e a defesa do estado democrático de direito, incluídos o princípio da presunção de inocência dos agentes, a garantia ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa", concluiu a corporação. 

Também indagado, o Ministério Público Federal (MPF) confirmou ter recebido o relatório policial na tarde de terça-feira (27). "Ele agora será analisado, para verificar se serão necessárias novas diligências. Quanto à investigação do MPF, ela estava suspensa aguardando o resultado das perícias criminais e deverá retomar o curso de agora em diante", completou.

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) foi questionado se poderá pedir o afastamento dos policiais estaduais envolvidos, mas ainda não se posicionou.

Sindicato sai em defesa de policiais

Ouvido por O TEMPO nesta quarta, o Sindicato dos Policiais Rodoviários Federais no Estado de Minas Gerais (SINPRF-MG), informou que o seu corpo jurídico está analisando a denúncia da PF, mas se manifestou com "total apoio" aos policiais rodoviários e militares "que arriscaram a vida em prol da sociedade de Varginha".

"(...) enfrentando indivíduos com extensa ficha criminal, e que efetuariam crime de domínio de cidade, colocando em risco os honrados cidadãos da cidade. Recebemos, estamos analisando e daremos todas as informações tão logo tenhamos o relatório analítico do jurídico do SINPRF-MG", concluiu a entidade.

PF pode indiciar policiais militares pelas 26 mortes?

A partir de agora, cabe ao MPF avaliar a possibilidade de apresentação de denúncia com base nas provas colhidas e investigação própria. Em nota o órgão disse que vai avaliar possível retomada das apurações sobre o caso que estavam suspensas "aguardando o resultado das perícias criminais". Se o Ministério Público entender que cabe denúncia, o próximo o é o julgamento em um Tribunal do Júri. Ao longo dos próximos os, a própria Justiça pode entender que cabe à PM essa apuração e encerrar a investigação.

Relembre a operação

As forças de segurança começaram a investigar o grupo em agosto de 2021. No fim de outubro, após informações indicarem sobre um novo assalto em Varginha, foi montada uma operação conjunta entre a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Na manhã de 31 de outubro, os policiais adentraram duas chácaras em que estavam os suspeitos. Conforme a versão oficial da PMMG, na primeira, foram 18 suspeitos mortos; na segunda, outros oito, totalizando 26. A corporação também divulgou que foi recebida com tiros pelos suspeitos.

A ação chegou a ser comemorada pelas autoridades, à época. A porta-voz da PMMG, capitão Layla Brunnela — atualmente major —, disse que aquela era a maior operação referente ao “Novo Cangaço” no país e que “muitos infratores fariam um roubo a banco, naquele dia ou no dia seguinte, e foram surpreendidos pelo serviço de inteligência da PM integrado com a PRF”.

A PRF informou, por meio de nota, que "a quadrilha possuía um verdadeiro arsenal de guerra sendo apreendidos fuzis, metralhadoras ponto 50, explosivos e coletes à prova de balas, além de vários veículos roubados. Foram arrecadados ainda diversos “miguelitos” (objetos perfurantes feitos com pregos retorcidos usados para furar os pneus das viaturas policiais)".