NEGRITUDE

Primeira doutora negra em filosofia do Brasil, Helena Theodoro é tema de ocupação

“Trilogia Matriarcas” parte do olhar e das vivências da mulher preta em espetáculos de música, teatro, cinema e artes plásticas

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 23 de abril de 2025 | 06:00

Eles estão em todos os lugares do mundo. “Até na China tem negro”, afirma Helena Theodoro. Ela é a primeira doutora negra em filosofia do Brasil, título conquistado em 1985, o que justifica a homenagem da ocupação “Trilogia Matriarcas”, em cartaz a partir desta quarta (23) em Belo Horizonte. Mas, ao entrar no terreiro de Mestre Didi e Mãe Stella de Oxóssi, ouviu a advertência que nunca esqueceu.

“Da porteira pra fora você pode ser doutora, da porteira pra dentro é apenas uma iniciada que está aqui para aprender outra maneira de ver o mundo”. A partir do olhar e das vivências de Helena nasceram os espetáculos que compõem a ocupação, – que ainda prevê sessões de filmes, debates, oficinas, exposições de artes plásticas – “Mãe de Santo”, “Mãe Preta” e “Mãe Baiana”, tratando da mulher negra em sua “dimensão política, secreta e sagrada”.

“Em nenhum lugar do mundo tivemos tanta gente escravizada, então a visão que se tem da comunidade negra no país é muito distorcida, inclusive no sentido de que haveria uma superioridade intelectual e social da comunidade branca. Vejo a filosofia africana como um remédio para esse mundo louco em que vivemos, de pobreza, desigualdade, crise climática. Ninguém é melhor do que ninguém, a mulher não veio da costela de Adão, nem somos metade da laranja, somos inteiras”, contextualiza Helena, que, ao ser convidada para participar da escritura das peças percebeu, de imediato, a “oportunidade para mostrar, através do teatro, as diferentes formas como a filosofia africana entende o princípio feminino em igualdade com o princípio masculino”.

“A dramaturgia se abre aos diferentes aspectos da mulher negra pela visão africana, seja ela mãe de santo, empresária, atriz, empregada doméstica”, enumera Helena, marcando uma diferença fundamental com o “oba-oba da mulata, da atração turística”. “Mulata vem de mula, e nós não somos mulas, somos pessoas. Enxerguei no teatro essa chance de transformar a perspectiva de mundo judaico-cristã que moldou a sociedade brasileira”, defende Helena. Uma experiência intimamente dolorosa a guiou nessa caminhada. Em 1981, seu filho caçula Brício, de 4 anos, morreu afogado, “tragicamente, na beirada da praia”.

Trauma 

“Nunca esqueci do meu filho, consegui me recuperar sendo cuidada pelas pessoas, entendendo que o destino dele era um e o meu era outro, e que eu ainda existia além da mãe, da filha e da profissional”, relata Helena, que completa: “As mulheres negras são as que mais sofrem com a perda de filhos nessa sociedade racista. A maioria dos presos e dos jovens mortos são negros”. O conforto e a força necessárias ela encontrou em seu “território”, recorrendo aos terreiros, à família e às escolas de samba. Em 1984, se tornou jurada do Estandarte de Ouro, um reconhecido prêmio do Carnaval carioca, cargo que ocupou durante 27 anos.

Logo, teve a certeza de que “se os europeus inventaram o Carnaval, os brasileiros o reinventaram”. Como estudiosa, voltou suas lentes para a luta da comunidade negra não mais como “um povo somente escravizado, mas sobretudo criativo”. “As escolas de samba refletem esse processo de unidade, o tambor e a bateria são o coração, as alas trazem a diversidade, é um espaço de cura em que as pessoas olham umas para as outras e compreendem suas diferenças e semelhanças”, pontua, destacando o papel da porta-bandeira e do mestre-sala.

“As cores, o canto, a reverência representam o território”, ressalta. Ao chegar em Dacar, capital de Senegal, para um evento acadêmico com professores e doutores da Sorbonne, em que se falavam 7 dos 11 dialetos do país, ela se viu sem resposta ao ser perguntada sobre a sua tribo no Brasil. “Compreendi que todo mundo tem uma tribo. Sou carioca, tijucana e salgueirense. É uma descoberta incrível como pertencemos aos lugares em que a gente vive”, salienta. Em sua casa, a mãe cantava e as primas e tias estavam sempre presentes para animar o ambiente com sambas que soavam como “verdadeiros hinos de confraternização”.

Na abertura da mostra em sua homenagem, haverá um show da cantora Fabiana Cozza. “Ela traz essa ancestralidade negra na música, e é interessante notar as marcas das tradições deixadas entre nós. Existem culturas de pelo menos cinco países africanos que vieram para o Brasil. A batida do Maranhão é diferente da do Rio, assim como Milton Nascimento, que é puro Congo, de Minas, é diferente de Martinho da Vila”.

Renascimento 

Autora da biografia de Martinho da Vila, que ela ajudou a transformar no musical “Martinho, Coração de Rei” ao lado de Miguel Falabella, Helena, aos 82 anos, tem consciência da sorte de ter começado a vida com pais que tinham formação universitária, exceção à regra da época. A militância da mãe, intérprete de inglês, e do pai filiado ao Partido Comunista jamais a abandonou. 

“Tivemos algumas conquistas, mas a luta segue até hoje. Somos o segundo país mais negro do mundo, só existem mais negros fora do Brasil na Nigéria, mas ainda somos tratados como inferiores”, lamenta Helena, que enxerga a ancestralidade “como memória e não apenas nos traços físicos”. “Cada criança negra que nasce é um ancestral que nos volta”, arremata.

Serviço

O quê. Ocupação “Trilogia Matriarcas” homenageia Helena Theodoro

Quando. Abertura nesta quarta (23), às 19h, com show de Fabiana Cozza; e programação completa no site www.ccbb.com.br/bh 

Onde. Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450)

Quanto. De R$15 (meia) a R$30 (inteira) na bilheteria do teatro ou no site do CCBB