Saxofonista

A liberdade de não entender John Coltrane

Redação O Tempo

Por RAPHAEL VIDIGAL
Publicado em 17 de julho de 2017 | 03:00

“Não precisa ser entendida”. Sem explicitar a que se referia, todos sabiam que John Coltrane falava de música. Se após a própria morte ele cumpriu o desejo declarado em entrevista de tornar-se santo – com a criação da Igreja Ortodoxa Africana de São John Coltrane, na Califórnia, para adora-lo –, foi após a perda do pai que o saxofonista norte-americano encontrou na música o retiro para seus êxtases e angústias. O começo ainda tímido e deslocado no conjunto de Miles Davis, em meados da década de 1950, pouco guardaria de semelhança com o músico associado ao mais experimental e vanguardista estilo de jazz dos últimos anos de carreira, até sua morte precoce, em 17 de julho de 1967, vítima de um câncer no fígado, há matemáticos 50 anos.

Se a busca pela exatidão é uma premissa do jornalismo que reivindica datas para justificar a lembrança a um ou outro ídolo, Coltrane, com sua arte, fez justa e exatamente o contrário. Pois sua única e mortal função foi propor a liberdade, ou, ao menos, alguma libertação. Traduzido literalmente como “jazz livre”, o modo como Coltrane decidiu tocar até o fim é semelhante à concepção do poeta Carlos Drummond de Andrade: “O pássaro é livre na prisão do ar/ O espírito é livre na prisão do corpo/ Mas livre, bem livre/ é mesmo estar morto”. Para além de explicações sobre acordes, tons e notas, aquela que não precisa ser entendida foi levada por Coltrane de maneira vital: um enigma tentando desvencilhar-se dos limites.

Trajetória. Os 40 anos de vida do saxofonista ados nesse mundo começaram numa cidadezinha do interior da Carolina do Norte, cujo simbólico nome apresenta, em si, conteúdo para explorações das mais diversas: Hamlet, alcunha do atormentado personagem de Shakespeare, famoso pelos versos “ser ou não ser, eis a questão”. Nascida em uma típica família negra da região, seu pai era alfaiate, enquanto a mãe cuidava das atividades domésticas. No entanto, já através do patriarca, ele teve os primeiros contatos com os instrumentos tocados por ele, em sessões após a dura rotina de trabalho, com o violino e violão.

Filho único, aos 12 anos começou a tocar clarinete na banda da escola. Dali para a troca pelo saxofone contribuíram a iração por gênios do instrumento como Johnny Hodges (da orquestra de Duke Ellington) e Charlie Parker, com quem tocaria e, de acordo com biógrafos, também adquiriu o vício pela heroína, sob a crença de, desta maneira, ampliar sua concentração musical. Tão radical quanto a experiência com a droga foi a decisão de larga-la, sem nenhuma ajuda médica, e com sucesso.

Álbuns.  Dos mais de 100 discos gravados por Coltrane ao longo da carreira, como solista ou acompanhante, destacam-se o autoral “Blue Train” – onde assina quatro das cinco composições –, o dueto com Miles Davis em “Kind of Blue” (1959) – um dos mais influentes do gênero até hoje – além de “A Love Supreme” (1964) e “Ascension” (1965), sendo estes últimos paradigmáticos em sua história, já que, a partir daí, ampliou a licença para fazer o que quisesse. Outro aspecto fundamental é que, mesmo à revelia ou sem a exacerbação verbal por parte do músico, os conceitos ali utilizados podem ser compreendidos a partir de sua perspectiva originária, afinal de contas a atonalidade e arritmia sonora nada mais são do que a liberdade para um coração bater sem definir o ritmo, flutuando entre os tons a cada hora. Não precisa ser entendida. Basta sentir. 

 

LANÇAMENTO

Tudo o que diz a boca eletrônica e verborrágica do novo álbum de Curumin

 

FOTO: AVA ROCHA/REPRODUÇÃO DA CAPA
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Curumin


É curioso o jogo de esconde e mostra tecido por Curumin no quinto álbum solo de sua carreira. Não deixa de ser indicativo dessa estratégia o fato de , no encarte, as composições com o nome de batismo (Luciano Nakata Albuquerque), ao invés de utilizar a alcunha artística. Também a capa do disco, que capta o músico com os olhos fechados e um olho em lugar da “Boca” – sem acaso nenhum, o título do CD –, é outra dica da experiência sensorial a que o álbum convida. Com a já conhecida recorrente utilização de recursos eletrônicos, o discurso presente nas letras procura revelar sentimentos e motivações prementes à geração atual e, se a sinceridade parece ser ponto pacífico, é pela verborragia mais cerebral do que sentida que o trabalho, por vezes, carece de consistência. Uma aventura com percalços.

As referências camaleônicas do disco pop e dançante de Vedovelli

 

FOTO: JOICE SANT’ANA / Reprodução da capa
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Camaleão 

A estreia no mercado fonográfico do gaúcho Vedovelli, ao contrário do que indica a coloração da capa, traz ecos de outras paragens. Menos ousado e renovador do que sugere a arte, “Camaleão” enfileira dez canções autorais do cantor em que a lembrança da obra de nomes como Tim Maia, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jards Macalé e Chico Buarque por vezes reverbera mais forte do que a sensação de algo novo, tanto nas letras quanto em melodias. Com direção de Kleiton Ramil e produção cuidadosa da Biscoito Fino, o trabalho realça temas dançantes inerentes à música pop e, principalmente, da esfera conhecida como disco music. Faixas como “Corpo a Corpo”, “Retrato” e “No Fundo do Peito” superam a qualidade do CD em seu conjunto.

 

Prata da Casa

FOTO: Ricardo carvalho/reprodução da capa
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Música de Sérgio Achtschim dá nome ao disco do Zé da Guiomar

Zé da Guiomar e suas cartas na manga

Para quem já conhece, não é surpresa o quarto disco de carreira do grupo Zé da Guiomar lançar mão de elementares novidades. A começar pela arte gráfica do projeto, que envolve o trabalho de Alexandre Batista, Gustavo Monteiro, Márcio Souza, Marcos Flávio, Renato Carvalho, Rodrigo Martins, Totove Ladeira e Valdênio Martinho.

“A ideia partiu do nosso querido amigo Ricardo Carvalho, o Spock, que sugeriu esse formato com belas imagens e fora do padrão”, explica Ladeira. Além de se abrir como envelope logo na capa, “Carta na Manga” tem outros trunfos. “A música que dá nome ao disco foi escolhida, em primeiro lugar, porque gostamos da canção e, em segundo, por ser sugestiva sobre o momento atual do samba e as dificuldades que o gênero enfrenta diante de um mercado cada vez mais pasteurizado. É a nossa arma para enfrentar esse momento obscuro”, avalia o percussionista.

Porém, o enfrentamento da trupe é sempre com muito ritmo e, principalmente, humor, em letras tão inspiradas quanto mantenedoras da essência e tradição do estilo já centenário, casos de “O Doutor” (Ricardo Barrão e Fabinho do Terreiro), “Olha Goreth!” (Alexandre Rezende) e a reverente “Samba é Convicção” (Thiago Delegado e Murilo Antunes). “O samba tem lugar cativo no coração do brasileiro”, garante Ladeira.