Música

O samba do palhaço triste

Documentário sobre Adoniran Barbosa se dispõe a desvendar lado menos conhecido do autor de 'Trem das Onze'

Por Raphael Vidigal
Publicado em 02 de maio de 2018 | 03:00

O encontro marcado por telefone, no bar do hotel Jaraguá, em São Paulo (SP), poderia sugerir alguma conotação amorosa entre a escritora e o compositor. Mas, na verdade, a intenção de Adoniran Barbosa (1910-1982), que tomou a iniciativa, era conhecer a autora dos versos presentes em “Balada de Alzira” (1951), o segundo livro de Hilda Hilst. Ali mesmo, a pedido dele, Hilda escreveu “Só Tenho a Ti”, “Quando Tu as Por Mim” e “Quando te Achei”, gravada por Elza Laranjeira depois de receber melodia de Adoniran.

Uma rápida “olhada” nessas canções revela um lado pouco divulgado do compositor, que é justamente o mote de “Adoniran: Meu Nome é João Rubinato”, documentário dirigido por Pedro Serrano que acaba de ser lançado no festival É Tudo Verdade e será exibido, em junho, no In-Edit – dedicado a produções com temática musical – antes de chegar ao circuito comercial no segundo semestre deste ano.

“O lado mais forte e representativo do filme é descobrir essas camadas profundas e sensíveis do ser humano. Não quer dizer que o personagem que ele fez a vida inteira não fosse também o Adoniran, mas tinha a ver com uma faceta pública, diferente da particular que todos relatam, de uma pessoa mais calada, sóbria e até triste”, conceitua Serrano. Para chegar a essa conclusão, o diretor optou por ouvir pessoas do círculo íntimo do artista, como sua única filha, Maria Helena, além de sobrinhos e também amigos de longa data, casos de Eduardo Gudin, Carlinhos Vergueiro, o produtor musical Pelão e o ilustrador Elifas Andreato.

O ilustrador, aliás, foi responsável pelo desenho que acabou descartado pela gravadora Odeon, em 1980, quando o disco “Adoniran Barbosa: 70 Anos” era levado adiante graças aos esforços do jornalista e produtor Fernando Faro. Com a desaprovação dos diretores, foi encomendada uma nova ilustração. Posteriormente, Adoniran confessou ter se identificado com o primeiro retrato, mas já era tarde. “Ficaram com medo de ele não gostar e pediram uma imagem mais tradicional do Adoniran. Depois de ver o desenho original, o Adoniran falou para Andreato que aquele palhaço triste era ele, e não o com cara de alemão que acabou saindo na capa”, conta Serrano.

Num dos depoimentos concedidos para o filme, o ilustrador contorna essa relação entre vida e arte do homenageado: “A obra de Adoniran é trágica. Com certo humor, ele conseguiu fazer a gente rir da desgraça que é a condição dessa vida”, diz. 

Reconhecimento. Além de entrevistas inéditas, Serrano também se valeu de imagens de arquivo para compor o filme. Todas as falas, inclusive as de Adoniran, foram selecionadas seguindo o mesmo princípio. “Não me interessava ouvir celebridades jornalísticas falando sobre a relevância da obra”, ressalta. Apesar disso, o diretor escolheu uma estrutura que ele define como “basicamente cronológica”. “Achei que era importante entender de onde o Adoniran veio, como ele começou e terminou, já que sua trajetória foi cheia de altos e baixos”, justifica o diretor. 

Antes de consagrar um estilo único no cancioneiro nacional, ao levar para o universo do samba o falar “italianado” que colhia nas ruas, Adoniran tentou a sorte como encanador, pintor, tecelão, serralheiro e garçom. A música era apenas um atempo, criada a pé, no trajeto entre os trabalhos e sua casa. O primeiro reconhecimento veio em 1935. Premiado num concurso de marchinhas da prefeitura por “Dona Boa”, Adoniran gastou todo o dinheiro, que estava reservado para comprar um paletó, na comemoração com os amigos. Dois anos antes, estrearia no rádio cantando a música “Filosofia”, de Noel Rosa.

“Até os anos 30, ele tinha muitos ídolos, que eram os cantores de samba da época. Na verdade, ele queria cantar como Orlando Silva, Ataulfo Alves. Tanto que pegou emprestado do Luís Barbosa, um cantor que ele irava muito, o sobrenome artístico”, observa Serrano. Outro encontro decisivo foi com a cantora Elis Regina, que registrou “Iracema”, “Bom Dia, Tristeza” e “Tiro ao Álvaro”. “Ele se emocionava muito com a Elis, porque ela cantava a tristeza inerente às músicas”, conclui Serrano.