Chapeuzinx
Pela estrada afora, lá vamos sei lá para onde
Plateia cheia, criançada esperando, o segundo sinal já tinha tocado. Foi aí que seu João - o velho porteiro do teatrinho infantil - entrou correndo, esbaforido:
- Seu diretor! Não abre as cortinas não, pelo amor de Deus! Tem um povo lá fora fazendo a maior zoeira! Manifestante, moça de cabelo azul tocando tambor! Faixa, foguete, megafone! Tudo gritando: “não vai ter peça, não vai ter peça!” O diretor saiu para conferir. Um grupo raivoso e espumante berrava. A líder - uma moça seminua, seios pintados como olhos de lobo e uma pele de animal amarrada à cintura - apontou o dedo para o nariz do diretor:
- Pare imediatamente com essa peça! E já!
- Mas.... Mas...
- Que “mas” coisa nenhuma, seu hétero, branco, fascista, elite dominadora!
- Calma, moça. Vamos conversar, peraí. Me explica, pô!
- Ah! Se fazendo de inocente?! Pensa que a gente é trouxa? “Lobo Mau” ... Esse seu lobo é um “Chrysocyon brachyurus”, patrimônio brasileiro, o lobo-guará nacional, habitante do mesmo ecossistema dos povos indígenas, dos maxakalis? Ou por acaso é uma espécie norte-americana alienígena, invasora, imperialista?
Um rapaz, cara coberta com touca ninja, chegou mais à frente:
- E esse “caçador” da sua história? Um macho empoderado, carregando uma espingarda... É evidente que a arma em questão é um símbolo fálico, uma afronta, instrumento óbvio de opressão! Sem falar no discurso falacioso e canalha do macho armado no papel de “salvador”. Tá na cara! Vocês não am de uma cambada de golpistas!
O grupo repetiu: “Golpistas! Golpistas!”
- Estamos indignados com o uso perverso do verbo “comer”. O lobo “come” a vovozinha, uma idosa indefesa, desprotegida de seus direitos enquanto cidadã? Isso é insinuação de assédio! Um incentivo subliminar à violência contra a mulher! Depois ele “veste” a roupa dela? Não percebe que isso agride frontalmente o direito ao travestismo, ridicularizando a liberdade de se usufruir de qualquer traje masculino ou feminino?
Outro militante berrou lá do fundo:
- Teatrinho nada! Melhor fazer uma plenária; um debate aberto com as crianças sobre a sexualidade dos animais selvagens, cópulas explícitas, sem preconceitos!
A seminua interrompeu-a. Tomou as folhas de papel das mãos de seu companheiro, sacudindo-as violentamente:
- Essa criança é dominada pela mãe e se submete aos desejos da família tradicional! Foi obrigada a levar docinhos para a avó...
Como assim? Por que ela não se rebela contra essa tirania ancestral, o patriarcado judaico-cristão? Nosso coletivo não aceita! Isso é um caso evidente de exploração de trabalho infantil!!!
Um terceiro manifestante chegou à frente:
- ... e se Chapeuzinho é uma criança, por que determinar seu gênero para a plateia? Ora: nessa idade, ela está apta a decidir se vai querer seu menina ou menino. Ou caçadora ou lenhador. Ou lobo ou loba. Ou sapo ou rã.
- Nem Chapeuzinho nem Chapeuzinha... Tem que ser Chapeuzinx! Indefinido e livre! Sem repressão! Senão a gente quebra tudo aí!
A multidão foi à loucura.
- Chapeuzinx! Chapeuzinx! Chapeuzinx!
O diretor buscou abrigo atrás do pipoqueiro, com medo do linchamento. Mas ainda ouviu:
- E pode ir mudando a cor do chapéu. O vermelho é a cor dos movimentos sociais. Identificar a protagonista numa situação permanente de inferioridade remete à odiosa discriminação de grupos historicamente afinados com as reivindicações populares e...