JUDICIÁRIO

‘Ainda estou aqui’: Com caso Rubens Paiva, STF julgará anistia a crimes permanentes da ditadura 

A Corte vai decidir se Lei da Anistia se aplica a crimes de sequestro e cárcere privado cometidos na ditadura. Tema foi reconhecido como de repercussão geral 

Por Renato Alves
Publicado em 25 de fevereiro de 2025 | 10:20

BRASÍLIA – A partir dos casos do ex-deputado federal Rubens Paiva e de outros dois opositores à ditadura militar, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai analisar se a Lei da Anistia se aplica aos crimes de sequestro e cárcere privado cometidos durante o regime em vigor entre 1964 e 1985, com repercussão geral. A decisão foi unânime entre os ministros, em análise no plenário virtual da Corte.

São três os processos que motivam o debate no Tribunal. Dois deles são recursos extraordinários com agravo (ARE) que tratam do desaparecimento forçado de Paiva e do jornalista Mário Alves, cujos corpos nunca foram encontrados. O outro é um ARE que diz respeito ao assassinato do militante Helber Goulart, da Ação Libertadora Nacional (ANL). 

Nos três casos, o Ministério Público Federal (MPF) questiona decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que entenderam que os crimes estavam abrangidos pela Lei da Anistia e encerraram as ações penais contra os acusados.

Na semana ada, o STF decidiu discutir se a Lei da Anistia abrange crimes permanentes que até hoje estejam sem solução, como os de ocultação de cadáver. Ao reconhecer a repercussão geral desses três novos casos, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, a Corte amplia o debate para crimes com “grave violação de direitos humanos”, conforme proposta do MPF. 

Para o órgão, sequestro e cárcere privado também têm natureza permanente e não devem ser atingidos pela Lei da Anistia. A tese a ser fixada pelo STF no julgamento do mérito deverá ser seguida pelas demais instâncias do Judiciário.

Os "crimes permanentes" são aqueles cujos efeitos se prolongam no tempo, como o sequestro e a ocultação de cadáver, cujas consequências continuam a se estender por dias, meses ou até anos. A decisão do Supremo impactará o julgamento de processos semelhantes em instâncias inferiores em todo o país. 

A Lei da Anistia, de 1979, perdoou os crimes políticos e conexos cometidos apenas entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Em 2010, o STF validou a norma com base na Constituição de 1988.

Omissão nos crimes de Estado

Em sua manifestação, seguida por unanimidade, Alexandre de Moraes destacou que a responsabilização do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) por omissão nos crimes de Estado durante a ditadura demonstra a necessidade de uma nova discussão sobre o assunto no país, tendo como base uma “ordem constitucional que preza de modo intransigente pelo respeito aos direitos humanos”.

De acordo com o ministro, os processos em tramitação sobre Paiva e os outros dois opositores da ditadura são uma oportunidade de o STF tratar do assunto com base em novos elementos. “Os presentes casos tangenciam matéria de grande relevância para a pauta dos direitos humanos, permitindo que agora o STF avalie a questão a partir da perspectiva de casos concretos, com diferentes nuances”, afirmou.

História de Paiva é contada em ‘Ainda estou aqui’

Rubens Paiva foi preso pelo regime militar em 1971. Depois disso, nunca mais foi visto. Sua morte só foi reconhecida pelo Estado brasileiro 43 anos depois. No fim de janeiro, sua certidão de óbito foi corrigida para descrever os horrores pelos quais ele ou e deixar claro que ele foi vítima da ditadura militar. 

A nova versão do documento descreve que a causa da morte foi “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”. 

A mudança atende uma resolução aprovada em dezembro de 2024 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que obriga a corrigir a certidão de 202 vítimas da ditadura. Os 232 desaparecidos oficiais durante o regime militar também terão direito a um atestado de óbito.

A primeira versão do atestado de óbito de Rubens Paiva foi emitida em 1996, 25 anos depois do desaparecimento. O momento em que a esposa do ex-deputado, Eunice Paiva, recebe o documento é encenado em “Ainda Estou Aqui”, o filme brasileiro indicado a três Oscars: Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz – para Fernanda Torres, que interpreta Eunice. 

Já Mário Alves, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, foi preso em 1970 e até hoje se enquadra como desaparecido político. O militante Helber Goulart foi preso em 1973, e seus restos mortais foram encontrados num cemitério em São Paulo em 1992.